28 de setembro de 2008

Uma resposta à demarcação não continua da Raposa Serra do Sol

A Terra Indígena Raposa Serra do Sol é habitada por mais de 18 mil indígenas das etnias Macuxi, Wapixana, Ingarikó, Taurepang e Patamona. O processo de demarcação se desenvolve desde o final da década de 70, sendo identificada pela FUNAI em 1993, demarcada administrativamente e fisicamente em 1998, e finalmente homologada em 2005. Corresponde a 7,7% do Estado de Roraima, estando localizada em uma área de fronteira com a Guiana e Venezuela.


Além dos Povos Indígenas, outras pessoas habitavam a região. Destas 131 famílias receberam indenização por parte do Estado por benfeitorias de boa-fé realizadas na região. No entanto, a área ainda permanece ocupada por seis grandes produtores de arroz.

Durante os dias 25 a 27 de agosto, estava previsto o julgamento da ação proposta perante o STF pelo Governo de Roraima com apoio dos latifundiários da região, no qual a principal discussão seria a manutenção da demarcação contínua da Região da Raposa Serra do Sol. Essa decisão possui valor inestimável tanto por garantir ou não os direitos dos Povos Indígenas da região, como pelos reflexos que a posição tomada, seja a contrária ou a favorável à demarcação contínua, terá no futuro da efetivação dos direitos indígenas no Brasil.

Devido a repercussão do caso, diversas manifestações chamaram a atenção no último período sobre o caso. Diversos intelectuais, e assim esperava-se pela sua história, pronunciaram-se a favor da demarcação contínua, como o Professor Boaventura de Souza Santos, o Jurista Dalmo Dallari e a Senadora Marina Silva. Além deles diversos movimentos sociais, como o MST, a CUT e o CIMI, e partidos políticos, como o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), também firmaram posição favorável a demarcação contínua.

Do outro lado viu-se o que também se esperava: manifestações contrárias partindo do Exercito brasileiro, especificamente do Comandante Militar da Amazônia General Augusto Heleno, do Governo de Roraima e dos latifundiários da região.

Tudo conforme se esperava. Movimentos sociais e intelectuais de um lado, fazendeiros e o exército do outro. Até esse momento, nenhum espanto. Assim terminaria essa polêmica, sem grandes surpresas ou contradições, todos e todas a espera do STF, se não surgisse o texto intitulado: "A Amazônia é dos brasileiros: Raposa Serra do Sol e as ONGs Estrangeiras".

O espanto não surge pelos argumentos colocados no documento, pois esses já foram repetidos até o limite pelos contrários a demarcação. Mas sim pela sua origem, visto que o mesmo foi publicado no site da União Nacional dos Estudantes e escrito por dois dos seus diretores.

Assusta, de início, a posição pela demarcação não contínua, sobre o argumento de que tal processo atenderia os interesses de ONGs internacionais que usariam os indígenas como fachadas. A seguir mais justificativas são expostas como a necessidade de se ampliar a defesa militar na região por se tratar de área de fronteiras, e o último e mais espantoso dos argumentos, o qual se faz o favor de transcrever: "o melhor modo de defender a Raposa Serra do Sol é construir município na área, povoá-la, preenchendo com a presença de índios e não-índios, gente que trabalhe, produza, gere atividade econômica, política, social e cultural".

O último dos argumentos deixa bem exposto a filosofia por trás dos que são contrários a demarcação contínua da Raposa Serra do Sol. É aquela que não entende os indígenas como povo, não reconhece suas atividades econômicas, políticas e produções culturais. Por isso a necessidade de se "povoar" a região de não índios, agregando-lhe "sentido" econômico, social e cultural. Entre a produção de arroz aliada às mazelas do latifúndio e as práticas tradicionais em parceria com as experiências economicamente e ambientalmente auto-sustentáveis dos povos indígenas, fico com a segunda, e felizmente, nossa Constituição Federal também. Nossa Carta Magma toma lado no momento em que efetiva como um de seus fundamentos a diversidade étnica e cultural do País, considerando nulos e extintos quaisquer atos jurídicos que tenham por objeto a ocupação, a posse e o domínio das terras indígenas no Brasil.

A ameaça à soberania nacional me parecia um debate já superado pelas experiências que temos no País. Mas, se não o foi, aqui estamos outra vez. Nas palavras da antropóloga Manuela Carneiro e da advogada Ana Valéria: "Terras indígenas são bens da União, inalienáveis e indisponíveis, e os índios têm a posse e o usufruto delas. Por isso o Estado pode ter sobre essas terras uma vigilância mais ampla do que a que pode exercer sobre terras privadas. Além disso, o Exército deve estar presente em todas as áreas de fronteiras, indígenas ou não". Assim como está na região da Raposa Serra do Sol, com bases militares ocupadas majoritariamente por soldados indígenas.

Vale também ressaltar a importância desses povos na demarcação histórica das fronteiras brasileiras, sendo a própria demarcação de Roraima resultado da presença de povos indígenas na região, e a sua importância na atualidade na manutenção de áreas de fronteiras brasileiras, como a dos Ashaninka do Acre contra a invasão de madeireiros do Peru, e a reserva indígena Ianomami, homologada em 1992 sobre as mesmas acusações de Raposa Serra do Sol por estar em região fronteiriça, e que se mantêm intacta até agora, sem manifestar nenhum perigo a soberania nacional.

Sobre os interesses internacionais na região é preciso separar o joio do trigo e não o tratar com a simplicidade e a demagogia que se costuma ter contato.

De um lado temos algumas experiências como a associação do Conselho Indigenista de Roraima com algumas ONGs internacionais para acionar mecanismos interamericanos de proteção aos Direitos Humanos como a Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, e nesse sentido não podemos criticar a atuação desses atores. Tal ação tem se manifestado eficiente em diversas violações dos direitos humanos no Brasil, do qual o seu maior reflexo é a edição da Lei Maria da Penha, que resultou de processo perante a OEA.

De outro lado temos a ganância do capital internacional pelas riquezas naturais da região.

É obvio e amplamente conhecido esse interesse. No entanto, utilizá-lo como justificativa para a demarcação não contínua, que significaria de fato abrir parte desse território indígena ao latifúndio já presente na região acreditando que isso seria a melhor forma de coibir a penetração do capital internacional, seria como acreditar na democracia racial no Brasil.

Uma das formas de manter a soberania nacional na região, combatendo o avanço do capital internacional é justamente a manutenção dos povos indígenas no território, apoiados por um Estado brasileiro fortalecido e vigilante a essa situação da região.

Não entendem tudo isso aqueles que não vêem os povos indígenas como povo brasileiro, como o General Heleno, os latifundiários, e, infelizmente, alguns estudantes.


*Por Tiago Ventura, é vice-presidente da União Acadêmica Paraense (UAP) e estudante de direito da UFPA

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